Ilustração: Beto Cândia
“O trem para na
estação, se não sei de onde venho nem para onde vou, por que estou tão
ansioso?”
F. F. Cosenza
F. F. Cosenza
Um homem para em frente ao velho
cinema, em destaque pelos arcos da São Sebastião. Ele dirige um sedan fosco,
2011, corte e barba esquecidos, mas esta não é uma história do papai Noel. Quer
apenas um pastel chinês, filmes longos, antigos, baratos, escuro, tempo e uma
chance.
Há também um jovem de vinte e poucos
anos; na camiseta uma mandala; na cabeça, gorro de natal, usa jeans, tênis e
maças com fogo. Não aceita dinheiro, identifica-se como artista de rua enquanto
o senhor é só interrogações:
–E o que faz um artista de rua?
–Nós fazemos pessoas felizes.
–Nós?
–Nossa filosofia doutor, ninguém é
uma coisa só, abriu –Ouvem a buzina, semáforo aberto, esquerda, vermelho,
verde, esquerda, vermelho, verde, esquerda, vermelho, verde e esquerda pela
quarta-vez.
–Eu sou só mais um engenheiro
sozinho no Natal.
–Doutor?
–Você pode mesmo fazer alguém feliz?
Soou o quarto trovão, horário em que os jovens
desligam seus desktops e optam pelos tablets ou, para aqueles que tiveram
oportunidade em ser feliz, hora de perguntar a seus pais quando se poderá
cortar o panetone enquanto assistem à Disney, no gibi.
No centro, porém, nosso vernáculo protagonista,
parado na tempestade, observa a última excitação do Néon sobre a porta do
pequeno hotel na marginal das palmeiras; outrora símbolo de poder, hoje
restaurada na busca da beleza de seus tempos áureos, porém cercada de grafites,
lascas de antigos rebocos e óxidos formados nas enchentes do último verão.
–Nome, por favor. – Insistia o gerente.
–É
mesmo necessário?
–Onde
está essa menina – Disse para dentro, depois para o visitante –Calma rapaz só
preciso de um nome para que tenha uma chave, não para espalhar em rede social
que está sozinho na noite de natal, estou saindo e deve haver mais alguém
querendo entrar, desembucha ou rua.
–Henrique
Dumont.
–Nome
e CPF da... vossa majestade.
Aproxima-se
a garota, o suficiente para um olhar, ele pede desculpas silenciosamente e
deixa o hotel, sem deixar a vizinhança. Logo também se retira o gerente, não
sem esbravejar pela placa apagada ou pela poça no buraco do asfalto. Carla
assume a recepção, administra a estada de uma família paranaense e caminha até
o rapaz sentado há meia hora nos balaústres da marginal:
–Um
quarto?
–Acabo
de entregar os últimos, não adianta ficar aí na chuva por... –Nova troca de olhares, ele a reconhece,
disfarça, dispara de volta à Praça XV, observa os bancos sem sucesso e retorna.
–Pode
me oferecer um quarto no Hotel Brasil.
–Se
quiser dormir com o Gasparzinho.
–Se
quiser realizar um sonho de hoteleira.
–Eu
não vou entrar com você em um casarão abandonado, ninguém entra lá.
– Ele
retorna para a chuva; ela veste seu casaco, anda depressa, exceto no
cruzamento, volta a correr.
–Você
sabe como entrar lá?
Aposto
que sua imaginação faz isso todos os dias.
Imagem adaptada de http://cleciavanzi.blogspot.com
Wow,
wow, batalha da XV, é hip hop
Se liga na vibe, sou misto
quente e este o doutor Gandalf
Vou arrasar, hoje, já arrasei no
half, half-pipe,
tô no meu dia irmão
se liga, tu já era, vai pro chão, hoje aqui sou seu
patrão
Sou misto quente, mestre na improvisação
Pois tu não rima, só arrota,
Mas...
Vai com calma, não se importa,
Pois aprendi no Adão que não é miséria que te
estreita o caminho para o chão,
É a derrota.
Adão é
o último bairro a oeste, onde vivia uma senhora que alimentava algumas crianças
em sua casa. Lá, Misto Quente possuía algum registro e também outro apelido;
este viera mais tarde, com o malabarismo e um tropeção no skate. A verdade é
que ele só frequentava durante a refeição noturna, momento em que via seu
platônico amor de infância. Contudo, o que seriam dos grandes homens se não
fossem donzelas a justifica-los o porquê em frequentar lugares?
Também gostava de apelidar. Em
quatro quarteirões a pé, o engenheiro, fabricante de alianças, podia ser
Gandalf, bastava enxergar o mundo com outros olhos. O doutor rebateu com “Dom
Quixote”. Chegaram à praça, encerrado o desafio de Flow sentaram em um banco,
muitas luzes e canções natalinas nas janelas.
–Como vamos entrar? –Perguntou a garota.
–Você entra, eu sou o hóspede, você a hoteleira. –Mas foi
ele quem entrou. Abriu a porta e andaram pelo hotel. Embora abandonado, Misto
Quente descrevia outra imagem e a imaginação de Carla via a transformação de
uma canoa em Titanic. Da sacada viam as luzes da cidade e as luzes de natal, um
céu de estrelas coloridas e outro céu no chão.
–Como
pode alguém passar pela vida sem conhecer as estrelas? –Perguntou o jovem.
–E
você as conhece pelo nome?
–Jamais,
como pode alguém entendê-las? Apenas busco inspiração, pois posso ter medo de
conhecer seu mistério.
–Mas
isso soa um tanto contraditório.
Contradições,
para todas as coisas, nós primeiramente aprendemos sobre um lado; em um belo
dia, descobrimos que a outra face tem seus porquês; então retornamos ao nosso
mundo inicial e aprendemos a discernir os argumentos verdadeiros.
A
chuva aperta, Carla lembra que abandonou a recepção vazia, Misto Quente conclui:
–É
melhor voltarmos ao trem.
–Você não repudia as luzes de natal,
repudia a felicidade, eu quem deveria repudiá-las, por três anos sobre piscas
vermelho, amarelo e verde equilibrando outras luzes ígneas em minhas maças. –Era
quando suavam seus olhos e ele partia.
–Tive meus motivos e minha juventude
ignorante. Como podes me julgar se ainda vive em vontades de criança?
–Então não é por isso que me
procuras?
–Já o observo há tempos, rapaz.
Desculpe-me se me exaltei, talvez seja por isso também.
Não se é feliz quando não se
importa, porém se pode revoltar quando se importa demais e se depara com um
mundo imperfeito. O caminho da felicidade é como um fio tênue entre essas duas
considerações da vida.
–Não é por isso que me procuras,
Gandalf, mas por que não sou covarde e o doutor cruzou o fio quando deveria ser
equilibrista.
–Sinto como se o tivesse
arrebentado.
US Amália, há um século pessoas
o veem e perguntam de onde viera, há melhor analogia com a vida senão um
caminho em que entram e saem pessoas enquanto se prossegue em seu destino?
Chovia muito, Carla e Misto Quente entraram no US Amália, na praça ao lado da
marginal, onde ele dormia há alguns meses, sem imaginar que a garota estava tão
perto. Possuía ali um rádio, onde tocava T.A.T.U, All About Us, enquanto eles
se imaginavam a mil por hora pelas luzes da Presidente Vargas; tocava Dido, Life
for Rent, enquanto acendiam as velas, foi quando notaram os gatos, que os
fizeram companhia e observaram os últimos carros na marginal, tocou Amazing
Grace durante os fogos de Natal.
–Preciso conversar com você.
–Aí Rapunzel, libera para o doutor
aqui. O doutor consegue por no meio das duas motos?
–E para onde vamos?
–Estou descendo para a batalha de
Flow, hoje é meu primeiro dia. Tem nome doutor?
–Por ora, sou um engenheiro que
fabrica alianças e “uma coisa só”.
–Doutor dos Anéis, então agora é o
Doutor Gandalf, já são duas. É um homem, três, e pode ser o que quiser.
–Filho, –Interrompeu. –Hoje não me
vejo como homem, homens não são aqueles que fazem o que têm vontade, homens
fazem o que deve ser feito.
–A alegria é o que deve ser feito,
ao menos hoje, Natal e dançar sobre as luzes dos castelos do centro da cidade.
–Esperava que pensasse assim, Dom
Quixote.
–Quem?
–Se você pode fazer alguém feliz, é
capaz de fazer o que eu não pude?
–É o que eu devo fazer, não é? Então
serei capaz.
–Há uma moça, jovem como você, você
já a conhece e deverá se lembrar, trabalha em um hotel na marginal...
Tocava Elvis, Amazing Grace no humilde rádio de Misto
Quente, quando Gandalf se levantou do penúltimo banco da Catedral de São
Sebastião, ainda tocava quando alcançou o US Amália e abraçou sua filha na
noite de Natal, dezenove anos após seu nascimento. Misto Quente se retirou e cruzou o ribeirão, caminhando sozinho com outros milhares de mendigos pelo centro da grande cidade na noite de Natal.