terça-feira, 20 de dezembro de 2011

US Amália

Ilustração: Beto Cândia

“O trem para na estação, se não sei de onde venho nem para onde vou, por que estou tão ansioso?”
F. F. Cosenza

Um homem para em frente ao velho cinema, em destaque pelos arcos da São Sebastião. Ele dirige um sedan fosco, 2011, corte e barba esquecidos, mas esta não é uma história do papai Noel. Quer apenas um pastel chinês, filmes longos, antigos, baratos, escuro, tempo e uma chance.
Há também um jovem de vinte e poucos anos; na camiseta uma mandala; na cabeça, gorro de natal, usa jeans, tênis e maças com fogo. Não aceita dinheiro, identifica-se como artista de rua enquanto o senhor é só interrogações:
–E o que faz um artista de rua?
–Nós fazemos pessoas felizes.
–Nós?
–Nossa filosofia doutor, ninguém é uma coisa só, abriu –Ouvem a buzina, semáforo aberto, esquerda, vermelho, verde, esquerda, vermelho, verde, esquerda, vermelho, verde e esquerda pela quarta-vez.
–Eu sou só mais um engenheiro sozinho no Natal.
–Doutor?
–Você pode mesmo fazer alguém feliz?


                Soou o quarto trovão, horário em que os jovens desligam seus desktops e optam pelos tablets ou, para aqueles que tiveram oportunidade em ser feliz, hora de perguntar a seus pais quando se poderá cortar o panetone enquanto assistem à Disney, no gibi.
                No centro, porém, nosso vernáculo protagonista, parado na tempestade, observa a última excitação do Néon sobre a porta do pequeno hotel na marginal das palmeiras; outrora símbolo de poder, hoje restaurada na busca da beleza de seus tempos áureos, porém cercada de grafites, lascas de antigos rebocos e óxidos formados nas enchentes do último verão.
                –Nome, por favor. – Insistia o gerente.
–É mesmo necessário?
–Onde está essa menina – Disse para dentro, depois para o visitante –Calma rapaz só preciso de um nome para que tenha uma chave, não para espalhar em rede social que está sozinho na noite de natal, estou saindo e deve haver mais alguém querendo entrar, desembucha ou rua.
–Henrique Dumont.
–Nome e CPF da... vossa majestade.
Aproxima-se a garota, o suficiente para um olhar, ele pede desculpas silenciosamente e deixa o hotel, sem deixar a vizinhança. Logo também se retira o gerente, não sem esbravejar pela placa apagada ou pela poça no buraco do asfalto. Carla assume a recepção, administra a estada de uma família paranaense e caminha até o rapaz sentado há meia hora nos balaústres da marginal:
–Um quarto?
–Acabo de entregar os últimos, não adianta ficar aí na chuva por...  –Nova troca de olhares, ele a reconhece, disfarça, dispara de volta à Praça XV, observa os bancos sem sucesso e retorna.
–Pode me oferecer um quarto no Hotel Brasil.
–Se quiser dormir com o Gasparzinho.
–Se quiser realizar um sonho de hoteleira.
–Eu não vou entrar com você em um casarão abandonado, ninguém entra lá.
– Ele retorna para a chuva; ela veste seu casaco, anda depressa, exceto no cruzamento, volta a correr.
–Você sabe como entrar lá?
Aposto que sua imaginação faz isso todos os dias.

Imagem adaptada de http://cleciavanzi.blogspot.com

                       Wow, wow, batalha da XV, é hip hop
                       Se liga na vibe, sou misto quente e este o doutor Gandalf
                       Vou arrasar, hoje, já arrasei no half, half-pipe,
tô no meu dia irmão
se liga, tu já era, vai pro chão, hoje aqui sou seu patrão
Sou misto quente, mestre na improvisação
Pois tu não rima, só arrota,
Mas...
Vai com calma, não se importa,
Pois aprendi no Adão que não é miséria que te estreita o caminho para o chão,
É a derrota.

                Adão é o último bairro a oeste, onde vivia uma senhora que alimentava algumas crianças em sua casa. Lá, Misto Quente possuía algum registro e também outro apelido; este viera mais tarde, com o malabarismo e um tropeção no skate. A verdade é que ele só frequentava durante a refeição noturna, momento em que via seu platônico amor de infância. Contudo, o que seriam dos grandes homens se não fossem donzelas a justifica-los o porquê em frequentar lugares?
Também gostava de apelidar. Em quatro quarteirões a pé, o engenheiro, fabricante de alianças, podia ser Gandalf, bastava enxergar o mundo com outros olhos. O doutor rebateu com “Dom Quixote”. Chegaram à praça, encerrado o desafio de Flow sentaram em um banco, muitas luzes e canções natalinas nas janelas.

                –Como vamos entrar? –Perguntou a garota.
                –Você entra, eu sou o hóspede, você a hoteleira. –Mas foi ele quem entrou. Abriu a porta e andaram pelo hotel. Embora abandonado, Misto Quente descrevia outra imagem e a imaginação de Carla via a transformação de uma canoa em Titanic. Da sacada viam as luzes da cidade e as luzes de natal, um céu de estrelas coloridas e outro céu no chão.
–Como pode alguém passar pela vida sem conhecer as estrelas? –Perguntou o jovem.
–E você as conhece pelo nome?
–Jamais, como pode alguém entendê-las? Apenas busco inspiração, pois posso ter medo de conhecer seu mistério.
–Mas isso soa um tanto contraditório.
Contradições, para todas as coisas, nós primeiramente aprendemos sobre um lado; em um belo dia, descobrimos que a outra face tem seus porquês; então retornamos ao nosso mundo inicial e aprendemos a discernir os argumentos verdadeiros.
A chuva aperta, Carla lembra que abandonou a recepção vazia, Misto Quente conclui:
–É melhor voltarmos ao trem.


–Você não repudia as luzes de natal, repudia a felicidade, eu quem deveria repudiá-las, por três anos sobre piscas vermelho, amarelo e verde equilibrando outras luzes ígneas em minhas maças. –Era quando suavam seus olhos e ele partia.
–Tive meus motivos e minha juventude ignorante. Como podes me julgar se ainda vive em vontades de criança?
–Então não é por isso que me procuras?
–Já o observo há tempos, rapaz. Desculpe-me se me exaltei, talvez seja por isso também.
Não se é feliz quando não se importa, porém se pode revoltar quando se importa demais e se depara com um mundo imperfeito. O caminho da felicidade é como um fio tênue entre essas duas considerações da vida.
–Não é por isso que me procuras, Gandalf, mas por que não sou covarde e o doutor cruzou o fio quando deveria ser equilibrista.
–Sinto como se o tivesse arrebentado.
                US Amália, há um século pessoas o veem e perguntam de onde viera, há melhor analogia com a vida senão um caminho em que entram e saem pessoas enquanto se prossegue em seu destino? Chovia muito, Carla e Misto Quente entraram no US Amália, na praça ao lado da marginal, onde ele dormia há alguns meses, sem imaginar que a garota estava tão perto. Possuía ali um rádio, onde tocava T.A.T.U, All About Us, enquanto eles se imaginavam a mil por hora pelas luzes da Presidente Vargas; tocava Dido, Life for Rent, enquanto acendiam as velas, foi quando notaram os gatos, que os fizeram companhia e observaram os últimos carros na marginal, tocou Amazing Grace durante os fogos de Natal.

–Preciso conversar com você.
–Aí Rapunzel, libera para o doutor aqui. O doutor consegue por no meio das duas motos?
–E para onde vamos?
–Estou descendo para a batalha de Flow, hoje é meu primeiro dia. Tem nome doutor?
–Por ora, sou um engenheiro que fabrica alianças e “uma coisa só”.
–Doutor dos Anéis, então agora é o Doutor Gandalf, já são duas. É um homem, três, e pode ser o que quiser.
–Filho, –Interrompeu. –Hoje não me vejo como homem, homens não são aqueles que fazem o que têm vontade, homens fazem o que deve ser feito.
–A alegria é o que deve ser feito, ao menos hoje, Natal e dançar sobre as luzes dos castelos do centro da cidade.
–Esperava que pensasse assim, Dom Quixote.
–Quem?
–Se você pode fazer alguém feliz, é capaz de fazer o que eu não pude?
–É o que eu devo fazer, não é? Então serei capaz.
–Há uma moça, jovem como você, você já a conhece e deverá se lembrar, trabalha em um hotel na marginal...

                Tocava Elvis, Amazing Grace no humilde rádio de Misto Quente, quando Gandalf se levantou do penúltimo banco da Catedral de São Sebastião, ainda tocava quando alcançou o US Amália e abraçou sua filha na noite de Natal, dezenove anos após seu nascimento. Misto Quente se retirou e cruzou o ribeirão, caminhando sozinho com outros milhares de mendigos pelo centro da grande cidade na noite de Natal.

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