sábado, 18 de dezembro de 2010

Melro, um conto de natal


 Somente uma vez a Serra de Batatais não é vista azulada do sudeste, quando da Tempestade do Barco Branco no dia em que se costuma doar sangue, então o céu também não tem rei, somente Deus.
Todavia o pequeno avião enfrentava, perdido entre as montanhas. Três homens, um, o piloto, vislumbrava sua recompensa; o segundo, se as algemas estariam bem presas e, o terceiro, Alex Roger, no escuro, vislumbrava apenas aquela garota de olhos verdes na primeira fila, lá embaixo, ao som daquela segunda ópera, qual era mesmo o nome, aquela que tocou após O Guarani... Uma explosão ou foram as rodas que tocaram o solo? Belo Horizonte, cinza.
 Longe dali, onde partira a aeronave, o jornal estampava o caso do mendigo que salvara a bela e jovem figurinista Larissa Eleonora da colisão contra um caminhão.
- É um Melro, gritava um senhor vestido de tecido sintético a lembrar pele de cabra, como do cordeiro esculpido na proa seu pequeno barco na lagoa da Pampulha, Belo Horizonte.
-Não é um Melro, doutor, é cigarra bambu. –Respondia seu sobrinho marinheiro, suboficial na verdade, da marinha do Brasil.
-É um Melro; ora, venha cá pequeno Melro – E o pássaro partiu para cima de uma rocha onde os navegantes encontraram um rapaz de vinte e poucos anos, apenas um pouco ferido. Somente carregava consigo suas vestes e um embrulho em seu bolso, um presente, um relógio. Tomou uma carona até a margem e agradeceu, caminhou, confuso, em direção à Universidade Federal de Minas Gerais. Repousando sob uma árvore de natal, outro homem surgiu a seu encontro.
-Berold.
-O que?
-Meu nome, Berold, qual o seu?
-Melro.
Melro procurou por si e identificou-se com aulas de resistência e ciência dos materiais enquanto caminhava pela universidade. Em período de provas finais, o coordenador do curso de engenharia mecânica compreendeu sua situação e os estudantes cederam asilo no alojamento. No entanto, a greve atrasou o envio de e-mails para demais universidades e Melro ficou até as provas, talvez aquele fosse um caminho que o lembrasse de quem era. E tirou dez em todas, fechando com cinco, sendo aprovado no quarto semestre da graduação.
Perto das cinco da tarde, Berold corre na direção de Melro e tenta falar com voz cansada:
-Desculpe, não pude ouvir seu nome. Você é aluno de engenharia, da EESC, no interior de São Paulo e temos de partir agora. –Sem ter o que arrumar ou em quem não confiar, Melro entrou no carro de Berold. Seu amigo dissera que vivia em Minas, Sacramento, divisa com São Paulo, onde passaria as férias. Não ouve tempo de ouvir o nome verdadeiro, somente a impaciência do policial civil contra o coordenador em uma discussão de poderes para invadir o campus e prender um bom aluno de uma escola paulista.
Pararam em um restaurante de Nova Serrana.  Berold, no entanto, ficou no carro enquanto a comida esfriava na mesa por tanto encarar o relógio. De repente surge um homem de cinza, bem vestido, mas com um dente um pouco maior e mais escuro que os demais. Senta-se tentando esconder sua preocupação, encosta os ombros na mesa, cruza os dedos em frente os lábios e diz calmamente:
-Aquele seu colega, o policial...
Melro não hesita, levanta, corre, atravessa o balcão, procura a saída dos fundos, entra em uma casa onde crianças brincam; sala, um telefone toca; cozinha; quintal, um cachorro, é pequeno, pula o muro; um terreno abandonado, corre; dois carros o espera: um marrom, donde um homem com dentes de ouro acena; no outro, Berold, negro em carro prata, comum. Melro corre entre os dois, vira duas esquinas, volta ao restaurante e retoma o relógio, por fim entra freneticamente no carro do amigo.
Foram dez minutos de silêncio até tentar repetir que mal sabia quem era e muito menos em quem poderia confiar.  Berold, entretanto, interrompeu e pediu para que confiasse nele uma última vez e deixá-lo-ia partir sozinho.
Pararam então em Luz, quando seu companheiro negro desapareceu em meio a um grupo de ciganos. No carro, um rabisco atrás do embrulho rasgado, QP3 e disso ele se lembrava, Quarteirão Paulista, terceiro prédio, Palace Hotel, noite de natal, festividade do amigo secreto... E de nada mais.
O combustível acabou próximo a Capitólio, de onde partiu a pé, por apenas meia hora até tomar carona em um caminhão de laticínios com destino a Passos. Em uma balança na entrada da cidade, a polícia pediu os documentos do motorista e um senhor de óculos pediu que Melro descesse.
Contou que vinha no carro de seu amigo Berold para o Palace Hotel, cuja festa natalina seria importante para descobrir a si próprio.
-Vou deixar que o pássaro voe, no limite de velocidade, é claro. É natal e se o encontro é tão importante para você, tome minhas chaves e dinheiro para pedágio e combustível.
E Melro atravessou as terras de Vaccarini, de Fiúca e Portinari, alcançando o quarteirão paulista, na capital da cultura em uma chuva sem trégua na noite de natal.
Entra no hotel, um imenso salão vazio onde as luzes se acendem.
-Olá, Alex – Diz Diogo, seu amigo de infância.
-Eu conheço você – respondeu – Alex...
-Sim, o outrora grande Alex Roger, mestre das...
-mestre das P2.  Meu nome, Alex Roger.
-Ele disse que se reconheceria ao dizer seu nome, pois, de verdade, é o que mais importa, mais que saber quem és, conhecer com quanto orgulho pode ouvir seu nome.
-Quem disse isso?
-Seu psiquiatra, a quem você deve um tanque e um pedágio.
-O policial? Por que eu tenho um psiquiatra?
-Alex, escute, você fugiu em um avião, deve ter batido com a cabeça no fundo da lagoa, mas se levantou, roubou um carro, abasteceu em outra cidade e o deixou depois de cento e cinqüenta quilômetros em um circo abandonado, sem combustível.  Você está em todos os jornais da região e sites da cidade. Você mandou matar Larissa Eleonor.
-Eu não matei Larissa!
-Claro que não, ela está ali, se preparando para a peça. –Tentou correr para a saída, Diogo o deteve, escorando-o na porta com o punho em seu colarinho. – E a polícia está lá fora, à sua espera, a menos que eu o convença a voltar para o carro e se dirigir à clínica. Agora relaxe. Eu tenho aqui – abriu seu computador e mostrou uma reportagem – o depoimento do mendigo que a retirou do carro antes do acidente.
Mas o homem da foto possuía um dente maior e mais escuro que os demais. –Diogo, agora é você quem deve acreditar em mim. Este homem tentou me separar de Berold.
-Alex, de uma vez por todas, não existe Berold na UFMG, nem em Sacramento, nem ciganos em Luz. Estão te seguindo desde Passos e já procuramos pelo que dissera.
-Uma sósia, alguém tomara o posto de Larissa no teatro e capangas, sim, capangas. O mendigo era o homem do restaurante ou o segundo homem no avião.
-Você não pode criar uma história para...
-Eu te posso entregar teu presente?
Diogo o soltou, uma chance, mais uma chance. Larissa não deveria estar longe dali, talvez na pequena sala sob o proscénio, ninguém mais entra lá, onde o diretor respondia a pontos, donde somente se entra pelo palco ou pelo túnel da antiga lenda da cervejaria. Contudo, a peça iria começar.  Alex estava ágil e ofegante:
-Você distrai o público, Diogo. E correu rumo ao teatro.
-Mas o que digo?
-Ora, vamos logo, fale sobre os Melros.
-E o que há com os melros? E o que lá são melros?
-Melros são como pardais, mas são melros. Distantes no espaço; longe, tão comuns, perto, tão raros. São como os heróis; tão distantes no tempo que às vezes pensamos que não mais existem, mas existem sim, e, assim tão perto, vestindo outras penas.
Então corre Melro, vai Alex Roger, coberto, entra no palco e imita as asas do pequeno pássaro até atingir a entrada do poço. Diogo proclama aves e ventos, Larissa lá está, mas não é Larissa, é sua sósia, sua irmã, que volta à coxia e liga para seus capangas. Embaixo da madeira, abaixo de seus pés, Alex Roger encontra a porta.
Por toda a Alta Mogiana já se contou a lenda do poço entre a choperia e a antiga fábrica, hoje, abandonada, e vítima das enchentes. Deveria ser um museu, um santuário... Muita água, até há um barco ali, uma gôndola. Suas paredes centenárias resistem e seu relógio ainda respira e bate meia noite quando os dois jovens apaixonados se reencontram, bate meia noite quando a polícia prende os capangas, meia noite, noite de natal e lá vão os jovens navegantes entre as palmeiras do ribeirão. 


Imagens: 
No Ordinary Rain Storm by phatpuppy, deviantart 
Blackbird, by FoolEcho, deviantart
Cervejaria Riebirão, adaptado de estudios-kaiser-de-cinema, guiacidades.wordpress.com

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