terça-feira, 5 de abril de 2011

O treinador sertanejo, Parte I

Gláucio de Alcântara não era bixo. Ele não. Ele e uns dois ou três nasciam a cada dez anos com inteligência na periferia de Pena Augusta, há uns dez quilômetros e mais duas horas de Feira de Santana.

Os outros setecentos e doze nascidos por lá nessa década tinham sua inteligência contida a suas próprias imaginações enquanto criavam cabras quinze horas por dia. E não se fabricava mais nada. Podia-se criar cabra, ser juiz, delegado, prefeito ou criar cabras de novo.

Missa houve por um tempo, mas depois da chuva, só lá em Feira de Santana mesmo (grande aventura, passar no agreste) ou lá em Conceição do Coité, quando dava pra ir.

Gláucio era mais magrim e sobrou de levar comida da pensão de Dona Santana pra fazenda. Tinha medo do búfalo, então dava a volta correndo pra modo da bóia não esfriar. Nisso conheceu Ana Maria, filha de Dona Santana da pensão e formada em medicina em Pernambuco.

A doutora quis levar o guri pruma corrida em Recife. Gláucio tinha mais era que trabalhar e soube da proposta só depois que a tal doutora voltara pra capital do estado vizinho. Mas soube. E se Gláucio não corre, a comida esfria, o caboclo não tem força, a cabra não dá leite e Dona Santana também fali. E se Dona Santana fali, aí complica tudo, porque é madrinha do guri. De batismo, é bom que se diga.


Quando Seu Geraldo, prefeito, vendeu o búfalo ficou mais fácil. Aí Gláucio já tinha inventado uma peruinha de madeira e rolimã e sobrava tempo pra continuar correndo.

No começo o povo estranhava do moleque gostar de correr assim do nada. Numa noite, de julho, Juca, filho do prefeito Geraldo e mais um amigo correram atrás do guri numa mobilete atirando cajus aos gritos de “vai trabalhar, vagabundo”. Nesse dia ele pousou no quintal de Dona Santana; não chorou porque tinha esquecido. De manhã, voltava Ana Maria e mais um gurizinho, filho dela, a quem apresentou a peruinha. Fato, Gláucio ganhou a pé e ensinou o moleque a correr.

Passados cinco anos, teve de se alistar. Aconteceu, porém, que os jogos escolares daquele ano seriam em Feira de Santana e o TG inscreveu todos os novatos. Todos temiam um certo Julim, campeão de PE nos oitocentos. Gláucio ganhou de dar capote pra surpresa de todos, exceto para a mãe do tal Julim, Ana Maria, que via seu filho único perder e sem o rolimã. Pena que o pessoal do TG não podia classificar nos jogos escolares.

E quem nunca tinha ido à escola virou o professor Alcântara na pista de atletismo do prefeito Geraldo. Ou professor Rolê, em referência à peruinha 2.0, agora literalmente a frente de uma Kombi com mais de vinte rolamentos e uma bandeira do São Paulo.

Quando Seu Geraldo deixou o terceiro mandato, o Juca pegou vice pelo outro partido e trocaram a pista por um memorial ao caju justo nas férias da garotada. Gláucio ou jovem algum dobraria prefeito sem levar chumbo. Cogitou, de fato, organizar alguma manifestação, mas nem sabia que essas coisas existiam ou resolveriam a pendência. Um mês depois, Dona Santana, solitária, foi morar com a família da filha em Recife. Lá chegando, decidiu buscar o afilhado, enviou uma carta ao filho do prefeito, que tratou de despachar Gláucio pra um ônibus, mas para Vitória da Conquista.


Continua...


Imagens: Money by AmongDreams, Deviantart. Cabras em Alagoas, ouroblog.com

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