terça-feira, 20 de dezembro de 2011

US Amália

Ilustração: Beto Cândia

“O trem para na estação, se não sei de onde venho nem para onde vou, por que estou tão ansioso?”
F. F. Cosenza

Um homem para em frente ao velho cinema, em destaque pelos arcos da São Sebastião. Ele dirige um sedan fosco, 2011, corte e barba esquecidos, mas esta não é uma história do papai Noel. Quer apenas um pastel chinês, filmes longos, antigos, baratos, escuro, tempo e uma chance.
Há também um jovem de vinte e poucos anos; na camiseta uma mandala; na cabeça, gorro de natal, usa jeans, tênis e maças com fogo. Não aceita dinheiro, identifica-se como artista de rua enquanto o senhor é só interrogações:
–E o que faz um artista de rua?
–Nós fazemos pessoas felizes.
–Nós?
–Nossa filosofia doutor, ninguém é uma coisa só, abriu –Ouvem a buzina, semáforo aberto, esquerda, vermelho, verde, esquerda, vermelho, verde, esquerda, vermelho, verde e esquerda pela quarta-vez.
–Eu sou só mais um engenheiro sozinho no Natal.
–Doutor?
–Você pode mesmo fazer alguém feliz?


                Soou o quarto trovão, horário em que os jovens desligam seus desktops e optam pelos tablets ou, para aqueles que tiveram oportunidade em ser feliz, hora de perguntar a seus pais quando se poderá cortar o panetone enquanto assistem à Disney, no gibi.
                No centro, porém, nosso vernáculo protagonista, parado na tempestade, observa a última excitação do Néon sobre a porta do pequeno hotel na marginal das palmeiras; outrora símbolo de poder, hoje restaurada na busca da beleza de seus tempos áureos, porém cercada de grafites, lascas de antigos rebocos e óxidos formados nas enchentes do último verão.
                –Nome, por favor. – Insistia o gerente.
–É mesmo necessário?
–Onde está essa menina – Disse para dentro, depois para o visitante –Calma rapaz só preciso de um nome para que tenha uma chave, não para espalhar em rede social que está sozinho na noite de natal, estou saindo e deve haver mais alguém querendo entrar, desembucha ou rua.
–Henrique Dumont.
–Nome e CPF da... vossa majestade.
Aproxima-se a garota, o suficiente para um olhar, ele pede desculpas silenciosamente e deixa o hotel, sem deixar a vizinhança. Logo também se retira o gerente, não sem esbravejar pela placa apagada ou pela poça no buraco do asfalto. Carla assume a recepção, administra a estada de uma família paranaense e caminha até o rapaz sentado há meia hora nos balaústres da marginal:
–Um quarto?
–Acabo de entregar os últimos, não adianta ficar aí na chuva por...  –Nova troca de olhares, ele a reconhece, disfarça, dispara de volta à Praça XV, observa os bancos sem sucesso e retorna.
–Pode me oferecer um quarto no Hotel Brasil.
–Se quiser dormir com o Gasparzinho.
–Se quiser realizar um sonho de hoteleira.
–Eu não vou entrar com você em um casarão abandonado, ninguém entra lá.
– Ele retorna para a chuva; ela veste seu casaco, anda depressa, exceto no cruzamento, volta a correr.
–Você sabe como entrar lá?
Aposto que sua imaginação faz isso todos os dias.

Imagem adaptada de http://cleciavanzi.blogspot.com

                       Wow, wow, batalha da XV, é hip hop
                       Se liga na vibe, sou misto quente e este o doutor Gandalf
                       Vou arrasar, hoje, já arrasei no half, half-pipe,
tô no meu dia irmão
se liga, tu já era, vai pro chão, hoje aqui sou seu patrão
Sou misto quente, mestre na improvisação
Pois tu não rima, só arrota,
Mas...
Vai com calma, não se importa,
Pois aprendi no Adão que não é miséria que te estreita o caminho para o chão,
É a derrota.

                Adão é o último bairro a oeste, onde vivia uma senhora que alimentava algumas crianças em sua casa. Lá, Misto Quente possuía algum registro e também outro apelido; este viera mais tarde, com o malabarismo e um tropeção no skate. A verdade é que ele só frequentava durante a refeição noturna, momento em que via seu platônico amor de infância. Contudo, o que seriam dos grandes homens se não fossem donzelas a justifica-los o porquê em frequentar lugares?
Também gostava de apelidar. Em quatro quarteirões a pé, o engenheiro, fabricante de alianças, podia ser Gandalf, bastava enxergar o mundo com outros olhos. O doutor rebateu com “Dom Quixote”. Chegaram à praça, encerrado o desafio de Flow sentaram em um banco, muitas luzes e canções natalinas nas janelas.

                –Como vamos entrar? –Perguntou a garota.
                –Você entra, eu sou o hóspede, você a hoteleira. –Mas foi ele quem entrou. Abriu a porta e andaram pelo hotel. Embora abandonado, Misto Quente descrevia outra imagem e a imaginação de Carla via a transformação de uma canoa em Titanic. Da sacada viam as luzes da cidade e as luzes de natal, um céu de estrelas coloridas e outro céu no chão.
–Como pode alguém passar pela vida sem conhecer as estrelas? –Perguntou o jovem.
–E você as conhece pelo nome?
–Jamais, como pode alguém entendê-las? Apenas busco inspiração, pois posso ter medo de conhecer seu mistério.
–Mas isso soa um tanto contraditório.
Contradições, para todas as coisas, nós primeiramente aprendemos sobre um lado; em um belo dia, descobrimos que a outra face tem seus porquês; então retornamos ao nosso mundo inicial e aprendemos a discernir os argumentos verdadeiros.
A chuva aperta, Carla lembra que abandonou a recepção vazia, Misto Quente conclui:
–É melhor voltarmos ao trem.


–Você não repudia as luzes de natal, repudia a felicidade, eu quem deveria repudiá-las, por três anos sobre piscas vermelho, amarelo e verde equilibrando outras luzes ígneas em minhas maças. –Era quando suavam seus olhos e ele partia.
–Tive meus motivos e minha juventude ignorante. Como podes me julgar se ainda vive em vontades de criança?
–Então não é por isso que me procuras?
–Já o observo há tempos, rapaz. Desculpe-me se me exaltei, talvez seja por isso também.
Não se é feliz quando não se importa, porém se pode revoltar quando se importa demais e se depara com um mundo imperfeito. O caminho da felicidade é como um fio tênue entre essas duas considerações da vida.
–Não é por isso que me procuras, Gandalf, mas por que não sou covarde e o doutor cruzou o fio quando deveria ser equilibrista.
–Sinto como se o tivesse arrebentado.
                US Amália, há um século pessoas o veem e perguntam de onde viera, há melhor analogia com a vida senão um caminho em que entram e saem pessoas enquanto se prossegue em seu destino? Chovia muito, Carla e Misto Quente entraram no US Amália, na praça ao lado da marginal, onde ele dormia há alguns meses, sem imaginar que a garota estava tão perto. Possuía ali um rádio, onde tocava T.A.T.U, All About Us, enquanto eles se imaginavam a mil por hora pelas luzes da Presidente Vargas; tocava Dido, Life for Rent, enquanto acendiam as velas, foi quando notaram os gatos, que os fizeram companhia e observaram os últimos carros na marginal, tocou Amazing Grace durante os fogos de Natal.

–Preciso conversar com você.
–Aí Rapunzel, libera para o doutor aqui. O doutor consegue por no meio das duas motos?
–E para onde vamos?
–Estou descendo para a batalha de Flow, hoje é meu primeiro dia. Tem nome doutor?
–Por ora, sou um engenheiro que fabrica alianças e “uma coisa só”.
–Doutor dos Anéis, então agora é o Doutor Gandalf, já são duas. É um homem, três, e pode ser o que quiser.
–Filho, –Interrompeu. –Hoje não me vejo como homem, homens não são aqueles que fazem o que têm vontade, homens fazem o que deve ser feito.
–A alegria é o que deve ser feito, ao menos hoje, Natal e dançar sobre as luzes dos castelos do centro da cidade.
–Esperava que pensasse assim, Dom Quixote.
–Quem?
–Se você pode fazer alguém feliz, é capaz de fazer o que eu não pude?
–É o que eu devo fazer, não é? Então serei capaz.
–Há uma moça, jovem como você, você já a conhece e deverá se lembrar, trabalha em um hotel na marginal...

                Tocava Elvis, Amazing Grace no humilde rádio de Misto Quente, quando Gandalf se levantou do penúltimo banco da Catedral de São Sebastião, ainda tocava quando alcançou o US Amália e abraçou sua filha na noite de Natal, dezenove anos após seu nascimento. Misto Quente se retirou e cruzou o ribeirão, caminhando sozinho com outros milhares de mendigos pelo centro da grande cidade na noite de Natal.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Um Tablet, um Capuccino e a Flor


Escuta, você quer parar de entortar meu pescoço?
Oi, desculpe?
A senhorita passa para lá e para cá, depois a gente fica com torcicolo e nós homens que somos sem juízo.
E por que você fica me encarando?
Eu? Ora, que absurdo, é algo fisiológico. É você que me fica tirando a concentração!
É? E do que?
Em observar as flores.
Flores? E que flores?
Dessa mesa não dá para ver, venha mais aqui.
Ainda não vejo.
Ainda está longe.
Acho que vi, mas o que que tem de mais?
Tem que eu as não conheço. Conheço muito de muitas coisas no mundo; das flores não sei sequer os nomes, apenas de onde as vejo e isso me atrai.

E no Tablet, o que vê?
Isso não importa.
Ligado e em um site de notícias
Pelo charme. Acordar de manhã, caminhar de guarda-chuva, parar na cantina com um tablet e um cappuccino ou uma TV na parede e um café. Talvez o resultado do jogo que já ou não assisti, talvez as vinícolas do sul, quem sabe o que se passa na TV, pela manhã é tão surpresa. Aceita?
Retribuiria se contasse o nome da flor?
Contudo a flor é aquela, ainda não a vê?
Sim, mas...
Então não precisa do nome.
E se quiser encontra-la?
Já a encontrou e já a guarda em recordação. Decerto não seria a mesma, os nomes não vêm acompanhado da cor ou da umidade do dia. Capuccino?
Talvez.

(continua)

sábado, 3 de setembro de 2011

O homem da pomba


    Avenida principal, a caminho da rodoviária, um rapaz, doravante denominado H, abre sua carteira e entrega seus últimos cinco reais a favor do jantar de um mendigo. Ao chegar, passa alguns minutos encarando os salgados no balcão da cantina contra o olhar ansioso da vendedora, doravante denominada M.


M: Vai querer alguma coisa?
H: Estou a me perguntar que gosto tem o peito do peru.
M: R$3,00
H: Na verdade estou é com sede, quanto é o Tampico?
M: R$2,50
H: Vou levar os dois, mas vocês aceitam cartão? (Diz após abrir a carteira, possivelmente se lembrou do mendigo).
M: Débito?
H: Isso, eu...
M: A senha, por favor.
Demora um pouco, e eis que a mulher volta:
M: Seu cartão não foi aceito.
H: Mas eu já mordi o salgado.
M: Você pode tentar de novo.
H: Aceita passagem para Ribeirão?
M: Não! (Supus que ela não achava muita graça das coisas nesta noite)
H: Bem, já que eu vou ser preso, vou tomar o suco também.
(linha ocupada, de repente uma pomba enlouquecida pousa no salgado e se entusiasma com o saco plástico do canudo)
M: Pode tentar uma segunda vez (terceira, na verdade) ou sacar no caixa eletrônico.
H: Tá, mas eu exijo que essa ave pague a metade.
M: Se conhecer o dono dela... (aêee, ela também tinha senso de humor)
Subitamente o rapaz vira para as poucas pessoas presentes na rodoviária e proclama:
H: EU QUERO SABER QUEM É O DONO DESSA POMBA BIRUTA.
Eis que, justamente um bêbado responde enquanto derruba um cabo de vassoura, mas não se aproxima.
B: Sou eu, pronto
H: Bom que o senhor confessa, seu pássaro é responsável por metade, aliás (e o cara tira uma HP da mala), por 54,55% dos meus custos neste estabelecimento.
O bêbado, estando mais para lá do que para cá não responde, ninguém mais influenciando no texto, talvez pelo vazio ou por terem tido dias cansativos faz nosso conto quase terminar por aqui. Acho que o rapaz foi ao caixa eletrônico e efetuou o pagamento.
Pouco depois, vejo-o a ouvir Nelly Furtado (tudo bem estar sem fone na rodoviária deserta) sentado nas escadas quando se aproxima um homem com um cabo de vassoura, outrora já me referi a ele como Sr. B:
B: Ô colega, será que você tem aí umas moedas pr’eu comprar comida pro meu pombo?
Chega o ônibus, aproxima-se o Armando, e vamos a Ribeirão.

Imagem: stranger_at_the_station_by_leugne-d3946ou, DeviantArt

sábado, 13 de agosto de 2011

Tempeia


"Mundo justo neste aspecto: funcionário satisfeito, cliente satisfeito! Hierarquia é tão ilógico, às vezes não se sabe quem precisa mais de quem."

   Estava eu a refletir sobre administração com um velho amigo, dissera com a frase acima defender a hierarquia em termos de organização, mas não de submissão por cada um estar dependente da participação do outro e o mundo seria justo no sentido que para ter cliente satisfeito é preciso um funcionário satisfeito e, graças a Deus, não o oposto. Empolgou (como sempre) e me enviou o seguinte texto:

Tempeia

   Não se espante com o título, é sim estranho, acabo de cunhar a palavra. De verdade não usei um cunho, foi mesmo embaixo do chuveiro nesta noite de sexta-feira. 
   É que dizem muito por aí de BrainStorm, mas não tiveram a idéia de utilizar uma palavra em português. Pela lógica, tempeia. Decerto alguém já criara, mas eu que não vou ao Google descobrir se já me copiaram antes mesmo de eu a compor; o mundo ficou de certo modo sem graça com a era da colaboração em rede global.
   Tome o caso de Darwin por exemplo, se o tio Gerard da esquina de baixo dum quarteirão qualquer francês tivesse notado a seleção natural sem navio e sem dinheiro, a França teria um cientista e a Inglaterra outro sem acusações de plágio.
   Foi justamente observando o movimento de uma lagartixa do outro lado da janela do banheiro que criei um personagem, Otávio – O Lagartixa, o qual também possuía sua dama Irenice, uma mulher com uma fobia estranha de imaginar que sempre havia um pedaço de fio de cabelo em sua boca.
–Otávio, eu não posso mais ficar com você.
–Mas eu te amo.
–E se eu não te amar?
–Ainda te amo.
–E se eu te trair?
–Eu te amo
–E se eu te roubar?
–Irenice, é um crime, mas já disse que...
–E se eu for corintiana?
   Poxa, dirá você, mas que lógica tem este texto? Faço engenharia mecânica, falemos um pouco disso retornando a nosso colega Darwin cuja seguinte frase, atribuída a ele, foi dita em palestra de inovação na inauguração do Fórmula SAE EESC E9: “Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”. Nesse ponto estou mais para físico filósofo grego que para engenheiro advogado romano a defender o saber por saber ainda que o conhecimento estivesse supostamente disponível a um ou dois cliques.
   Falemos de motor, a gente admite toda essa mistura de combustíveis ou bagunça de informações, elas ficam densas e, de repente, uma faísca leva à explosão, só no quarto tempo se vão os produtos inúteis. E aí, colega, o mundo já caiu em outra maracutaia.
   Esta conclusão, garanto que não é e cá está, só não revisarei o texto porque o tempo corre e o mundo muda rápido demais de tanto que se quer mudá-lo.
   Claudinha estava certa, neobarroco existe.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Após a reunião


A demora para o início da chuva deixaria um monstro em estado latente; porém aquele que saíra contente da reunião com a maior das fábricas janta uma garapa sentado na escada da rodoviária com seu gibi e uma bela história de aventura e vitórias na neve.
O monstro só vê as malas depositadas nos embarques, procura o túnel, lê “energia”, entra e ignora todas as placas de perigo, risco de vida, acesso apenas a pessoal autorizado.
O homem vê na nova torre a torre Eiffel, o monstro vê um crime lá em cima na madrugada; o homem é o enfermeiro, o monstro é a vítima. O homem fora preparado à reunião.


Imagens: Bus Station by Sarichi-Sa  e Bus Station by LejdiSanja on DeviantArt.

sábado, 21 de maio de 2011

A jornalista do estacionamento

-Se você tiver mesmo um carro lá em baixo eu te pego, garoto.
-Não, é só um atalho, jornalista.
-Como... como sabe?
-Lera minha camiseta, li a sua.
-Nossa.
-Foi pela camiseta, você nem sabe quem sou, apenas o mundo que frequento. Este homem, a subir a rampa trabalha com entregas de refrigerante, a profissão deve ser agradável. Muito prazer.
-Espere aí, vocês falam estranhos, são estranhos. Aposto que não tem uma namorada.

-Você tem uma fazenda?
-O quê?
-Nunca acordou se lamentando por não ter uma fazenda?
-E por que eu iria querer uma?
-Sentiria bem no campo, com animais e plantas.
-Eu tenho outras prioridades.
-Pois é. Eu não lamento por não ter uma fazenda. Mas aguardo, quem sabe um dia eu possa ter uma.
-Achei que tivesse.
-Não, é só a camiseta, ainda não sou rico, sou estudante.
-Mas já tem um carro lá em baixo?
-Não, só sairei pelo estacionamento, jornalista.
-Ainda não disse como sabes.
-Foi pela camiseta; além disso, você pergunta, mas se irrita em responder. Você não se lamenta em não ter fazenda?
-Que diabos você e essa tua suposta fazenda. Vocês complicam demais, por isso não conseguem uma namorada.
-E então?
-Então o quê?
-Vocês disputam de mais. Conseguir, conseguir o que? Não entendo os conflitos pelas coisas que podem ser suas com o devido tempo e devida dedicação; a palavra conquista tem várias feições, não?
-Feições?
-Sim, expressões opostas dependendo de como a consideramos.
-Quer saber o que eu acho? Vocês são incompreensíveis, falam outro português além desses, desses tiques.
-Temos muitas linguagens e erramos, você não é jornalista.
-?
-As pessoas erram muito, senhorita. Conversam com reis como mendigos e com mendigos como reis; mas se fossem reis para reis e mendigos para mendigos seriam mais respeitadas.Você tentou vir por baixo, foi surpreendida, voltou para cima, onde está acostumada, e tentou me ofender, mas não é uma má pessoa, pois se perdeu com as palavras.
-Se isso foi uma bronca, não entedi nada. De novo. Enfim, resume.
-Nunca tire a esperança de alguém sem apresentar outra solução; então a gente se vê.

terça-feira, 5 de abril de 2011

O treinador sertanejo, Parte I

Gláucio de Alcântara não era bixo. Ele não. Ele e uns dois ou três nasciam a cada dez anos com inteligência na periferia de Pena Augusta, há uns dez quilômetros e mais duas horas de Feira de Santana.

Os outros setecentos e doze nascidos por lá nessa década tinham sua inteligência contida a suas próprias imaginações enquanto criavam cabras quinze horas por dia. E não se fabricava mais nada. Podia-se criar cabra, ser juiz, delegado, prefeito ou criar cabras de novo.

Missa houve por um tempo, mas depois da chuva, só lá em Feira de Santana mesmo (grande aventura, passar no agreste) ou lá em Conceição do Coité, quando dava pra ir.

Gláucio era mais magrim e sobrou de levar comida da pensão de Dona Santana pra fazenda. Tinha medo do búfalo, então dava a volta correndo pra modo da bóia não esfriar. Nisso conheceu Ana Maria, filha de Dona Santana da pensão e formada em medicina em Pernambuco.

A doutora quis levar o guri pruma corrida em Recife. Gláucio tinha mais era que trabalhar e soube da proposta só depois que a tal doutora voltara pra capital do estado vizinho. Mas soube. E se Gláucio não corre, a comida esfria, o caboclo não tem força, a cabra não dá leite e Dona Santana também fali. E se Dona Santana fali, aí complica tudo, porque é madrinha do guri. De batismo, é bom que se diga.


Quando Seu Geraldo, prefeito, vendeu o búfalo ficou mais fácil. Aí Gláucio já tinha inventado uma peruinha de madeira e rolimã e sobrava tempo pra continuar correndo.

No começo o povo estranhava do moleque gostar de correr assim do nada. Numa noite, de julho, Juca, filho do prefeito Geraldo e mais um amigo correram atrás do guri numa mobilete atirando cajus aos gritos de “vai trabalhar, vagabundo”. Nesse dia ele pousou no quintal de Dona Santana; não chorou porque tinha esquecido. De manhã, voltava Ana Maria e mais um gurizinho, filho dela, a quem apresentou a peruinha. Fato, Gláucio ganhou a pé e ensinou o moleque a correr.

Passados cinco anos, teve de se alistar. Aconteceu, porém, que os jogos escolares daquele ano seriam em Feira de Santana e o TG inscreveu todos os novatos. Todos temiam um certo Julim, campeão de PE nos oitocentos. Gláucio ganhou de dar capote pra surpresa de todos, exceto para a mãe do tal Julim, Ana Maria, que via seu filho único perder e sem o rolimã. Pena que o pessoal do TG não podia classificar nos jogos escolares.

E quem nunca tinha ido à escola virou o professor Alcântara na pista de atletismo do prefeito Geraldo. Ou professor Rolê, em referência à peruinha 2.0, agora literalmente a frente de uma Kombi com mais de vinte rolamentos e uma bandeira do São Paulo.

Quando Seu Geraldo deixou o terceiro mandato, o Juca pegou vice pelo outro partido e trocaram a pista por um memorial ao caju justo nas férias da garotada. Gláucio ou jovem algum dobraria prefeito sem levar chumbo. Cogitou, de fato, organizar alguma manifestação, mas nem sabia que essas coisas existiam ou resolveriam a pendência. Um mês depois, Dona Santana, solitária, foi morar com a família da filha em Recife. Lá chegando, decidiu buscar o afilhado, enviou uma carta ao filho do prefeito, que tratou de despachar Gláucio pra um ônibus, mas para Vitória da Conquista.


Continua...


Imagens: Money by AmongDreams, Deviantart. Cabras em Alagoas, ouroblog.com

domingo, 27 de março de 2011

Os Cavalheiros da Zona Oeste, Capítulo I


            Explode o combustível no motor, rotações, fluidos, mecanismos, softwares, circuitos eletrônicos, reações químicas, atrações físicas, espirituais, mentes criativas... Vai o ônibus pela rodovia.
            O painel marcava 09C, contudo fazia 22ºC no interior do veículo com destino a São Carlos às 21h50min do domingo 13 de março de 2011. O São Paulo manterá a liderança no paulista, o mundo se virava para o Japão com a ameaça de contaminação nuclear após terremoto, tsunami e um vulcão naquela semana. Vai o ônibus em noite iluminada no interior paulista.
            Eram quarenta e quatro passageiros, quarenta e quatro histórias, quarenta e quatro das mentes mais brilhantes do país, quatro cavalheiros da zona oeste.


 Os Cavalheiros da Zona Oeste

            Zona Oeste, a cidade mais bela do país emergente dono do maior bioma da Terra, Zona Oeste capital da medicina, da cultura, do circo e do agronegócio. Zona Oeste das penitenciárias e favelas. Cidade cujas luzes são anfitriãs e vistas ao longe nas rodovias - ou nos céus - feito um Oasis em um deserto de açúcar. Nascem no ano de 1990 quatro meninos para revolucionar a ciência mundial.

 Do perigoso bairro do Ipiranga; um rapaz moreno, de voz forte, soluções infalíveis e nome guerreiro,  Martim. Também no Ipiranga nasce Vinimar, filho do contador.
Não se conhece muito sobre as origens de Guilherme antes dos catorze anos. Possivelmente já morava na antiga Vila Tibério. Contudo muito se conhece sobre a história de Mardem. Em junho de 1991, seus visionários pais e um anjo no papel de sua avó paterna chegam a uma casa sem reboque em uma estrada de terra no Parque Ribeirão, Ribeirão Preto-SP, após quitarem os prejuízos de um Conserto de Tanquinhos com a herança de seu avô materno em cidade próxima. Trabalham de segurança, garçom, vendedores de eletrônicos, de chinelos de pano e de costureira quando mais um anjo se materializa para a família.
Primeiro dia de emprego no hipermercado, o casal a pé pelos trilhos que separam a zona oeste da jovem zona sul. O pai corre para chegar, a mãe vai como pode e um carro para fetito navio no deserto e os leva ao destino. A tempo, novo emprego, reinício da vida. Algum tempo depois o pai é efetivado em uma multinacional. De recomendado por todos os responsáveis a idolatrado por todos os funcionários.

            No ônibus, Mardem recorda sua vida, e foram tantos os ônibus com sua avó. Imagina todo um mundo observando o canavial, compõe, sonha, pergunta-se, ouve músicas em seu celular.

            Aos seis anos, medroso, temia o mundo. Aos dezoito conversava de igual para igual com sem tetos, universitários ou qualquer grupo em qualquer ocasião. Entre estes tempos, amigos, histórias, vitórias, muitas vitórias, caça-tesouros, competições acadêmicas. Interessado por esporte, embora sem muito destaque nesta área, cresceu tendo o acampamento e o teatro como as maiores maravilhas do mundo.
             Em um mundo injusto, em uma vizinhança de sangue, Martim foi a ovelha branca e a ovelha lógica. No mundo real, Vinimar foi esperto, exemplo, criativo e desde novos ele e sua amada se apaixonaram.
          

Imagens: Ribeirao Preto - Ribeirao Preto - Brazil- Zona Sul - Vista do Jardim Iraja por Heitor10, Panoramio / Old West Gardens by NeonLynxie, Deviantart;

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A vida que flui em Uba

   Então viera a chuva; cada gota uma lágrima daqueles que se foram. Também cruzou o céu dois aviões em direções quase paralelas, sentidos opostos, foi por pouco. E não havia mais nada a se lembrar daquela tarde. Trocou-se às 10h como todo dia; entrou no mercado às 11h, como todo dia; almoçou às 13h, mas ela não estava na praça. Saiu às 23h, como todo dia.
   Fluir é uma palavra bonita, como "idôneo". De repente outras pessoas cumprem o sonho que cumprira outrora e você já não vê nisso tanto brilho, porquanto há novos desafios. Contudo, outros não vencem as primeiras etapas e integram as águas opacas.
 
   A vida flui. Às vezes laminar, às vezes turbulento, outrossim, correntezas, outrossim, calmarias ou calmarias tensas de estar em um fino, plano, quieto riacho tendo perdido parte da tripulação e estranho por tantos barcos idênticos, alinhados ou perdidos e comuns. Rochas, águas densas, deltas, águas rasas, entraves nos distanciam do outro e de nós mesmos. Cachoeiras, águas calmas, confluências, mergulhos, horizontes abrem-se em distintas coordenadas, reencontros.
   Os caminhos por onde Umberto (com U mesmo; ou Uba, como ela o chamava) andava eram feito a linha de corrente de um fluido incompressível, a energia mecânica sempre constante, pois fugia do atrito. Estava estático, até o almoço do sábado, quando ela anunciou ter ganho a bolsa atleta e, portanto, partiria para Ribeirão Preto para o terceirão em um cursinho particular.
   No domingo, trocou-se às 10h; chegou ao mercado às 11h; almoçou às 13h com uns colegas de serviço e saiu de lá às 22h, uma hora antes, para não mais voltar. Pagou o aluguel, sumiu da cidadezinha turística com destino ao interior paulista.
   Emprego tem, mas só para quem sabe ou para quem é esperto. A praça Camões era seu ponto de estagnação, onde recitava os versos do português às crianças que se admiravam com a estátua. À noite olhava carros em um barzinho perto da nove. Mas mendigo é mendigo; a concorrência o expulsou do bar e, a prefeitura, da praça, oferecendo um abrigo.
   Todavia a concorrência cobrava para não riscar e logo ia embora. Uba arrumou um bar mais afastado onde garantia uns R$ 85,00 por fim de semana ficando até o final das festas fazendo a recolha. Uma noite foi formatura e ela estava lá. Noutra manhã, uns carecas pintados pediam dinheiro na Vargas. Ficou frequente; então colou lá na baixada, arrumou uma bermuda, rapou a cabeça e foi também. Novamente, Gabriela estava lá.
   -Passou em que?
   -Economia
   -Mas não queria ser físico?
   -Pois é. E tu, vai pra onde?
   -Vou é ficar, Educação Física. Deix'eu apresentar. Aí Manú, esse aqui é o Umberto, nós éramos amigos lá em Capitólio. Acho que vocês vão ser da mesma turma. A sua é Economia e Controladoria?
   -Não, só economia mesmo.
   -Que pena, o bacharel é noturno, mas a gente se vê por lá.
   -Bem... Parabéns, Ela, parabéns Manú... Tenho uns amigos me esperando.

Jared as little beggar by ~CzaShinobi, DeviantART

   "Só economia mesmo", por sorte existia um curso em que a frase servisse. Mas foi o "éramos amigos" que pesou em Uba. Estudaram juntos sete anos, da terceira série ao primeiro do ensino médio, quando ele, por imposição do destino, entrou para o mercado, onde ainda a via por um ano ali na praça. Campus! Apelido todo mundo tem, entra como Uba, diz que tem vergonha do nome verdadeiro. O curso é noturno, qualquer um pode assistir, fechado! Encontrou vaga no alojamento de estudantes e emprego na cantina da química pela manhã. Quem lá se interessaria por descobrir sua vida?
   Errado, Isabela Balbo Jardim, do primeiro ano do Bacharelado em Ciências da Informação e da Documentação. Quando a conheceu em frente ao lago, Uba já era veterano, embora nunca ninguém visse suas notas que, quase sempre, eram vistas pelo número na faculdade.
   Somente uma vez se confundiu, guardou a prova em branco e entregou a correta. Correu até o professor, pediu de volta, pois faria a substitutiva.
  -Lembre de, ao menos, pôr o nome na próxima!
Isabela by ~Shercan, DeviantART
   Isabela, gata ribeirão-pretana. Logo no primeiro dia, uns quatro a cercavam. Contudo seu interesse era em um mineiro conhecido nesta história. Ele ouviu, olhou, gaguejou, confessou: 
  -Uba de que?
  -Umberto
  -Beto?
  -Beto, é, pode ser.
  -Você é o carinha lá da química né?
  Depois de um ano, quem lá negaria que passou em economia. Aluno de transferência não fica com o nome na lista da fuvest... Ainda mais mentir diante de uma deusa.
  -Na verdade faço economia, mas trabalho lá de manhã.
  -Uau, como dá conta?
  -É noturno e a cantina nem sempre fica cheia.
  -Sei, também te vejo lá na FEA...
  -...
  -Quero dizer, meu... irmão estuda lá e eu... eu acho que te vi indo pro CEFER ver a Gaby da... Ai meu Deus, ou eu te vi indo pro aloja e...Ai droga, tchau.
Swimmer by ~complejo, DeviantART
   Isabela não desistiu, entrou para a equipe de natação, conversou com Ela, perguntou de Umberto, nada de orkut, facebook, lista de vestibular, listas de transferências. Umberto não existia pra o Google.
   Nas férias de julho ele desapareceu e não voltou no semestre seguinte, em que Gabriela transferiu-se para São Paulo para integrar a grande equipe de Pinheiros.
    Uba investiu todo seu dinheiro da cantina e, em fevereiro seguinte, caminhava novamente na ponte do lago da USP, careca, com a lista de aprovados na mão, onde encontrou uma bela garota, Ela, Isabela. E a beijou.
   Umberto Teodoro forma-se no final do ano em tempo recorde. Viverão felizes para sempre.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A abandonada personificação de meu interior, Feliz Aniversário.


Meu nome, anagrama do normal
E tanto fujo desse interior
que não percebo o sincero, o cabal
no tempo ocupado e vida incolor

Dela, a personificação de mim
É tão livre, apaixonada, é tão Clara
Era. Até que eu a deixasse assim
Por frio, vergonha, tão longe, tão fraca

Então sugo seu amor com vil beijo
E amargo sua história quão bonita
Vícios deixo. Desculpas, desaprendo

Também não sei se é por culpa ou afeto
Desejá-la, todavia permita
Que eu deseje Feliz Aniversário.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ode


Há um milagre acontecendo ali
Desses que nós chamamos por “da vida”
Dum’milde inseto dentro da Amazônia
Tão dentro que não há ninguém para ver

Enquanto o bicho homem “só” trabalha
Trancafiado neste mundo urbano.
Mas, se ele estivesse na Amazônia,
Quem veria os milagres das ruas?

Há algo que enxerga as minúcias
E castelos: Ele se chama Deus
E é fonte de todas as ideias

Pensar é ler sua sabedoria
Amazônia: cópia em sua beleza
Há um milagre acontecendo aqui
                                          (e aí)